quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O sorriso de um anjo

        Estava eu na festa dos companheiros, amigos e filhos dos 70 no Fiorentina, quando vi uma linda companheira me olhando. Mais parecia um anjo olhando um saci, feio e velho. Por alguns instantes tive a nitida impressão que ela ia bater as asas, afastando todos nós, para ocupar ela, sozinha, todo o espaço do salão do Fiorentina. Ao seu lado estava uma outra companheira, loura, forte, alemã. Com certeza sua protetora e guarda-costas.

        Aquele anjo se aproximou e disse:
        - Tenho certeza que conheço você!
        Fiquei sem dizer nada. Eu é que tenho certeza que jamais visitei o paraiso. Pelos lugares que passei só encontrei o que me lembrava o inferno e seria impossível ter conhecido aquele anjo que poderia ter, talvez um 35 anos, não mais. Eu, com os meus 65 anos, estarva mais preparado e pronto para morder a moeda e terminar de atravessar o rio da vida pagando ao balseiro a travessia.
        Mas, ela insistia:
        - Seu rosto me é muito familiar!

        Aos poucos fui aceitando trocar uma prosa: se chamava Rita Guerra e a loura ao  lado era Renata Guerra, sua irmã. Devagar fui tomando consciencia que estava em terra e descobrindo a velha companheira Ritinha do Chile. Quando a conheci devia ter uns 15 ou 16 anos, casada com o Julinho.
        Então tudo me veio a lembrança. Claro que conhecia a Ritinha. Não porque tinha um dia visitado o paraiso, mas sim porque ela também tinha passado pelo inferno, se queimado barbaramente no Chile e passado 45 dias em uma CTI, cuidando das queimaduras.
        Procurei ver como estava, as sequelas do inferno, das queimaduras, do golpe do Pinochet e de tantos outras maldições. Então vi que ela estava bem, reconstruido a vida e seguido em frente. Isto me deixou extremamente feliz.

        Este foi mais um encontro para constatar quantos de nós sobreviveram e reconstruiram suas vidas  e continuam vitoriosos pese a todos os reveses.
        Relaxei por um instante e dei dois passos para o lado, topando com o Cardozinho que me olhou com aquele enorme olhar lânguido e carente:
        - Pedro: essa companheira me olhou e gostou de mim, me sussurou!
        Sem pestanejar, me virei para a Rita e disse:
        - Rita: este é o Cardozinho. Ele está apaixonado por você!
        Por um momento pensei que o Cardozinho fosse desmaiar ou me bater. Nenhuma das duas opções ocorreu. Aparentemente o papo continuou normalmente.

        Fui então me sentar e conversar com o velho companheiro Derly de Carvalho. E estava num bom papo quando o Cardozinho veio e  se sentou ao meu lado, falando:
        - A Rita gostou de mim, disse ele!
        - Droga Cardozinho, vê se ti manca cara. Será que toda mulher que te olha você pensa que gosta de você?
        E continuei tascando o pau no Cardozinho, para ver se ele se mancava. Mas ele insistia:
        - A Rita gostou  de mim ... repetia.
        Haja carência e narcisismo! E eu continuava a dizer que ele precisava se cuidar, caramba!
        O Derly vendo aquela insistencia do Cardozinho, e o ridiculo da situação, se escancarava de tanto rir. Eu comecei a recear que a qualquer momento o Derly fosse se jogar no chão de tanto gargalhar. Seria uma situação muito bizarra!

        Lá pelas 11 horas da noite o Cardozinho pegou um taxi e foi para casa com o Luizão. Fiquei com pena dele, do Luizão.
        Por volta de 1 hora da manhã saimos, eu e o Derly, da festa e ele  foi pernoitar em minha casa.

        Chegando em casa ficamos batendo papo até 3/4 horas da manhã.
        O companheiro Derly contou as peripécias pelas quais passou, desde 1966 quando fez a academia militar chinesa e conheceu pessoalmente Mao Tse Tung,  até o retorno e os trabalhos que fez pelo Brasil depois da anistia.
        Em uma das visitas que fez a uma cidade do interior de São Paulo, diz o Derly que, chegando na cidade, se hospedou em um pequeno hotel. Lá pelas 10 horas da noite sai para dar um passeio e aproveitar os ares do povoado.
        Caminhando no meio da noite viu, indo em sua direção, um homem alto com um sobretudo até o joelho, fechado. Sem pestanejar o Derly foi também firme em direção ao desconhecido.
        Comentei:
        - Caramba Derly, só podia ser um pistoleiro. Como é que você se safou dessa?
        - Continuei firme indo em direção ao sujeito. Quando estava a dois metros de distância, o sujeito abre o sobretudo e os braços ....
        - Já sei: te apontou uma arma?!
        - Não! Ele falou bem alto: grande Derly. Há quanto tempo ...!
        - Mas, caramba, fala o Derly, não tinha a menor ideia quem era o sujeito. Mas, para não decepcionar, gritei:
        - Há quanto tempo! O que é que você tem feito! E dei-lhe um grande abraço, como se o conhecesse realmente há muito tempo ...
        - Nos despedimos e segui em frente, relata o companheiro. Um pouco adiante, parei, voltei e segui o sujeito para ver quem era e para onde ele ia ....

        Admiro companheiros como o Derly. Eu não teria esta agilidade e traquejo que  teve, não reconhecendo o sujeito mas se fazendo um grande amigo. Acho que estou enferrujado. E pude constatar isto no domingo quando fomos eu e a Elena minha filha ao aniversário da Maria Claudia em Maricá.
         Lá estavam o Paulo Gomes, Tereza Ângelo e as filhas junto com o Adair, o Colombo e a Jesse. Ai pude constatar que o Adair, com aquele eterno 'sorriso' também perdeu todo jogo  de cintura. Tampouco se lembrava com quem esteve no cinema  há 40 anos atrás nem se lembrava do Cardozinho. Mas, caramba, que fazer diante de tanta insistência do Cardozinho, que teimava em dizer, durante todo o aniversário da Maria Claudia, que  conhecia êle e tinham ido juntos  ao cinema em 1969?
         Não custava nada o 'Sorriso' dizer:
        - Você não mudou nada, Cardozinho! Que filme bacana a gente viu!

Rio, 5 março 2011
Pedro Alves