segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Revolta (da Chibata) contra a sociedade punitiva e da ostentação dos suplicios

A Revolta dos Marinheiros de 1910, também conhecida como a Revolta da Chibata, em que participaram 2.379 marujos, começou no encouraçado Minas Gerais, recém recebido na Inglaterra. O palco era a cidade do Rio de Janeiro com um milhão de habitantes.

O governo do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914) apenas começava, depois das primeiras eleições competitivas da República Velha, nas quais concorreram o marechal Hermes da Fonseca, apoiado por Minas Gerais e pelo coronel gaúcho Pinheiro Machado, unindo oligarquias de diversos estados, e Rui Barbosa, apoiado pelas oligarquias de São Paulo e Bahia, em um pais de 20 milhões de habitantes.

Marinheiros brasileiros haviam ido para a Europa esperar a entrega das novas naves Minas Gerais e São Paulo e lá se deram conta de que a chibata não era mais aplicada. Tomaram conhecimento da revolta do encouraçado russo Potemkin e dos direitos e das liberdades individuais através dos movimentos sociais bastante fortes na Europa nesta época e já se antevendo o conflito da primeira guerra mundial, com os paises se armando.

Na véspera da Revolta o Comandante Batista das Neves havia punido um marinheiro com 25 chibatadas, a pena máxima prevista em lei, mas que foi aplicado em verdade  250 chibatadas.  A puniçao e o suplicio eram publicos fazendo-se questão de grande ostentação. Ao raiar do dia, toda a tripulação fora chamada ao convés do Minas Gerais para assistir aos castigos corporais a que seria submetido o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes. Os oficiais assistiriam à cerimônia em uniforme de gala, com luvas brancas e armados de suas espadas.

A compaixão e a piedade, que são caracteristicas do ser humano, independente de sua crença  ou  religião, ficam atiçadas com o  espetáculo do açoite, que lembra os navios negreiros. Impossivel não se sensibilizar a menos que humano não fosse ou há muito tivesse deixado de ser. Os comandantes loiros e brancos, como deuses que se consideravam, demonstram eles terem perdido os sentimentos humanos, mas tampouco  terem  adquirido os sentimentos divinos da misericordia que até ao inimigo se concede.

Segundo relatos atuais retirados do sitio da 'Associaçao dos Oficiais da Reserva do RJ', que pode ser visto clicando aqui, diz que o militar 'Cumpria o doloroso dever dos Comandantes ao julgar um subalterno ....'. Doloroso dever? De chicotear? É capaz destes militares virem dizer que ainda está doendo nas costas deles e não nas costas do marinheiro. Não conseguem, depois de cem anos, reconhecerem os erros, as crueldades e a tirania.

Os militares e, com eles os tecnicos das disciplinas, elaboravam processos para a coerção individual e coletiva de grupos sociais. Se os militares só conseguiam obter a displina mediante os castigos corporais, isto significa que não tinham conhecimentos técnicos ou competencia para exercer a função militar. Se fosse uma questão de solução punitiva a obtenção da displina, qualquer individuo ou grupamento social atenderia o critério.

Por outra lado, os juristas procuravam um modelo para a construção do corpo social, das instituições e de administração do poder.

A Justiça Militar e a Marinha confundem, ainda hoje, vários tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei. Confunde tambem policia com prisão, evidentemente pensando sempre em causa própria e daquilo que pode usufruir como se o pais fosse um grande quartel.

Já em 1790, durante a Revolução Francesa, discute-se uma nova organização do poder judiciário. Isto foi há mais de duzentos anos, quando em 3 de setembro de 1791, Thouret (2),  presidente da Assembleia Constituinte  apresentou a Constituição a Luis XVI.  Uma das grandes demandas na época era a abolição da tortura nos procedimentos criminais. Este fato foi precursor do artigo 5 da Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão (1) de 1948 que diz:
"Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

Ao se confundir os diferente poderes, de fazer a lei, de aplicar a lei e de punir, torna-se incerto o exercicio da Justiça: há tribunais, processos, partes litigantes, até delitos que sendo considerados 'privilegiados', se situam fora do direito comum e que torna esta justiça altamente irregular.

Para os militares, eles não abandonaram ainda a era da sociedade punitiva com a ostentação dos suplicios e ainda não chegaram a sociedade disciplinar onde deve prevalecer a sanção normalizadora, a organização, a disciplina e a vigilância hierarquica. Falta grandeza aos militares de reconhecerem seus erros, abandonarem os castigos corporais e participarem nos avanços das instituições sociais.

Durante todo o seculo XVIII e XIX, na Europa, forma-se uma nova estrategia para o exercio do poder de castigar, que é fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função reguladora, coextensiva a sociedade. Não punir menos, mas punir diferente. Punir com uma severidade organizada e normatizada, para punir com mais universalidade e necessidade. Trata-se de uma nova politica em relação as ilegalidades.

Calcula-se que em 1910, as guarnições compunham-se de 50% de negros, 30% de mulatos, 10% de caboclos, e 10% de brancos. Parte desses elementos eram recrutados a força e muitas eram meninos 'de rua'. Não existia uma politica para a criança o e o adolescente. Não se fazia um exame para verifcar as aptidões. Os recrutados em verdade eram muitas vezes sequestrados nas ruas e obrigados a servir. Nenhum exame ou teste era realizado. O exame permitiria qualificar, classificar e organizar. O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber e aptidões a uma certa forma de exercicio de poder. O exame cercado de todas as suas tecnicas documentárias, faz de cada individuo um 'caso': um caso que constitui um objeto para o conhecimento e também uma tomada para o poder.

O exame como fixação das diferenças individuais indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status sua própria individualidade, ligado que está aos traços, as medidas, aos desvios, as 'notas' obtidas que o caracterizam e fazem dele um 'caso'. Evidentemente que esta evolução não interessava as lideranças militares da época, pese a que uma das revinvidicações dos marinheiros era justamente o aprendizado.

As disciplinas e, a sociedade disciplinar, marcam o que poderia se chamar troca de eixo politico da individualização. Nas sociedades de regime feudal, por exemplo, a individualização é maxima do lado da soberania e no alto do poder. Numa sociedade disciplinar o poder se torna cada vez mais anônimo e mais funcional e mais 'descendente'. Nós temos hoje o fenomeno das 'redes sociais', twitter, blogs, midias alternativas, etc, numa clara nova modalidade de poder crescente.
O direito de punir era um direito do soberano, do imperador. Ora, o imperio e, D. Pedro II, já não esavam mais no poder, haviam terminado recentemente. Mas o direito de punir e punir o corpo, continuava existindo. A mudança para a República ocorreu sem que fossem mudados os principios e a interligação de poderes na sociedade brasileira: o imperio existia sem imperador.

O castigo da chibata, que é um suplicio, é uma punição publica. Quem pune desta forma também está cometendo uma ilegalidade, ao menos aos olhos de quem está presente. A cidade punitiva, como a sociedade punitiva, foi praticamente abolida na Europa no inicio do seculo XIX. Também foi abolido toda punição pública. Mas, esta sociedade punitiva permanece contudo no Brasil ainda nos dias de hoje.

No direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania. Ela utiliza as marcas rituais da vingança que aplica sobre o corpo do condenado, estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontinuo, irregular, descontrolado e sempre acima de suas proprias leis, com a presença fisica do soberano e do seu poder acima de tudo.

Para os juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os individuos como sujeitos de direito. Utiliza não marcas, mas sinais, conjuntos codificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamente possivel pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possivel.

A prisão substitui o exercicio fisico da punição. A prisão é o suporte institucional, o jogo social dos sinais de castigo.

Podemos dizer hoje que, João Candido, foi um dos grandes defensores dos direitos humanos ao não aceitar a tortura como uma prática vigente na sociedade.

Com o levante vitorioso, os marinheiros negociaram o fim da chibata e a anistia. No dia 26 de novembro  entregaram os navios.

Contudo, Hermes da Fonseca não ficou satisfeito com o resultado e buscou estabelecer o estado de sitio. Mas para conseguir aquela medida de exceção era necessario um fato mais grave do que a revolta da Armada, pois com a anistia a crise se esvaziava e ele não poderia usar a violência.  Eis  então que surge um levante, no dia 9 de dezembro no Batalhão Naval. Foi reprimido a ferro e fogo, como o marechal-presidente queria. De uma guarnição de 600 praças só 60 sobreviveram.

Ficou claro também o oportunismo e crueldade do Marechal Hermes da Fonseca que se aproveitou do caso para tirar vantagem política da revolta: decreta estado de sítio, suspende as garantias constitucionais, e faz imperar o terror policial na capital, prendendo inúmeras lideranças  sociais e opositores.

O proprio João Candido junto com outros 17 marinheiros foram presos na masmorra da ilha das Cobras, de onde apenas ele e outro marinheiro, conhecido como 'Pau de Lira', conseguiram escapar. Dezesseis marinheiros morreram na  noite de Natal de 1910, asfixiados pela cal e água jogadas na enxovia. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Marques da Rocha, pegou as chaves, que deveriam ficar com o sargento carcereiro,  e  levou-as para o  Clube Naval onde pernoitou.

Pelas caracteristicas da prisão da ilha das Cobras e como procedeu o comandante Marques da Rocha, é de se desconfiar que era uma prática a aniquilação de elementos e opositores indesejados, jogando-os na enxovia e inundando  com cal e água para que morressem, apresentando um laudo médico de morte por 'insolação' como foi o laudo dos 16 marujos mortos no Natal de 1910.

João Cândido, considerado louco pelos médicos da marinha, foi transferido para o hospital dos alienados, situado na praia Vermelha, em abril de 1911, onde encontrou outro grande líder negro do inicio do século XX: o médico Juliano Moreira.

A junta médica do hospital, chefiada por Juliano Moreira, após submeter João Cândido a exames, atestou que ele não apresentava nenhum distúrbio.

Este, em verdade, é o grande documento histórico que atesta a veracidade e a verdade dos depoimentos do Almirante Negro.

Apesar de anistiados, uma centena de marinheiros é jogada nos porões do navio Satélite e desterrada para a região amazônica a fim de cumprir trabalhos forçados. Da Casa de Detenção foram retirados 293 presos e 45 mulheres, também trancafiados no navio. Sete marinheiros foram fuzilados e centenas de desterrados morreram na viagem sem volta nas mais atrozes condições.

Foi este mesmo Marechal Hermes quem mandou bombardear Salvador, em 10 de janeiro de 1912, causando muitas mortes, atendendo as ambições de seu ministro J.J.Seabra, que posteriormente tomou posse como governador da Bahia em março de 1912.

Venceslau Brás, eleito presidente em 1914, recebeu do militar Marechal Hermes um país endividado financeiramente com os banqueiros europeus  e com uma divida social, politica e humana com a nação.

Evidentemente que se pode ver a revolta de muitos pontos de vista: politico, humano, social, etc. Também podemos ver como uma iniciativa de renovação, modernização e empreendedorismo, bem como capacidade de liderança demonstrada por J.C. (João Cândido), valores tão fortemente desejados e buscado hoje em dia por empresas e governos. Afinal, não foi a toda que oficiais ingleses foram a bordo do Minas Gerais oferecer asilo aos marinheiros, que recusaram.

O término da chibata permitiu uma melhoria das relações humanas dentro do navio, com certeza facilitando futuros recrutamentos algo tão dificil naqueles tempos.

Até hoje, a Marinha não aceita a história de João Cândido e sempre procura apresentar sua propria versão. Mais bem faria que jogassem cal e água em todas as versões que denigrem a Revolta e demonstrassem um pouco de espirito de grandeza, magnanimidade e generosidade, reconhecendo que a Marinha se renovou e avançou com João Cândido.

Rio, 22/11/2010
Pedro Alves
1. Declaração Universal dos Direitos Humanos
    Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
    da  Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
2. Jacques Guillaume Thouret (30 abril 1746 – 22 abril 1794) foi   Girondino Frances revolucionario, advogado, presidente da Assembleia Nacional Constituente e vitima da guilhotina.

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